Temas polêmicos, diálogos incisivos e roteiro excelente. Mais um grande filme do diretor norte-americano Oliver Stone
Uma visão panorâmica, feita de um helicóptero, surge mostrando uma grande cidade norte-americana no seu anoitecer. Carros trafegando, prédios se impondo em direção ao céu, anonimamente milhões de pessoas simplesmente seguindo suas vidas. Uma voz de um radialista rompe essa visão oferecendo informações meteorológicas — e provavelmente preenchendo centenas de milhares de lares, carros e escritórios com sua voz. Ele se despede e começa a tocar a enérgica e empolgante música Bad to the Bone de George Thorogood. Na sequência vemos uma grande antena de transmissão e outra voz surge para anunciar o programa mais ouvido de Dallas: Conversa da Noite com Barry Champlain.
Então o expectador é impactado pela voz grave e profunda de um radialista que inicia anunciando as “piores notícias da noite”. Enquanto sua voz preenche o filme, ao mesmo tempo se é conduzido pelo ambiente da rádio na qual ele trabalha, a KGAB. Sem papas na língua o comunicador de origem judia descarrega uma torrente de notícias impactantes, talvez ruins, sobre seus ouvintes. Ao mesmo tempo recebe ligações deles, conversa com sua audiência e oferece, com ainda menos pudores, suas opiniões sobre assuntos variados. É claro que uma figura tão desbocada como Barry também não acabaria arranjando o mais convencional dos públicos para ouvi-lo e interagir com ele.
Assim começa Talk Radio — Verdades que Matam dirigido nos anos 80 pelo cineasta Oliver Stone. O filme estrelado por Eric Bogosian foi originalmente escrito pelo próprio ator para o teatro — o que lhe valeu uma indicação ao Prêmio Pulitzer — e posteriormente foi adaptado para as telas dos cinemas. Bogosian assim interpreta Barry Champlain, debochado radialista que conquista enorme sucesso ao tratar de temas delicados em conversas, algumas vezes monólogos, com seu público ouvinte. Curiosamente a história contada tem um pé na realidade na medida em que foi inspirada em Alan Berg, um jornalista texano assassinado nos anos 80 por neofascistas por também ser um tanto quanto bocudo.
Eric Bogosian interpreta Barry Champlain, debochado radialista que conquista enorme sucesso ao tratar de temas delicados em conversas, algumas vezes monólogos, com seu público ouvinte.
Se logo no início do filme demoramos alguns minutos para ver o rosto a quem pertence a voz que opina sem pudores sobre assuntos variados, é porque o filme busca, por mais que isso não seja possível em uma produção cinematográfica, oferecer a primazia da voz sobre a imagem — voz que sempre é tão fundamental para um bom radialista por ser seu único laço com seu público. Barry Champlain de alguma forma parece dominar isso e cativa seus ouvintes que tanto o amam quanto o odeiam. Talvez um dos fatores para isso seja de que o comunicador, em determinados momentos, ofereça conselhos motivacionais ao seu público, como para a depressiva Debbie, converse com jovens desajustados com Kent, que tenta convence-lo por telefone que sua namorada está morta, ou mesmo tem um papo com um maníaco chamado Chet, que envia a Barry um falso pacote bomba. Barry, sem dúvida, é cativante e mordaz. Como ele mesmo diz: Paus e pedras podem feri-los, mas as palavras podem causar danos irreversíveis.
Curiosamente, apesar das variadas conversas que o radialista acaba tendo com sua eclética audiência, acaba existindo um fio condutor de temas caros e que acabam sendo trazidos à tona: legalização das drogas e aborto são dois deles. É claro, por mais que questões corriqueiras do debate político sejam postas a mesa — coisa comum em muitos filmes de Oliver Stone — o filme não se torna panfletário. As opiniões ali expressas não são colocadas com o objetivo de convencer o expectador, talvez somente entretê-lo de algum modo — afinal de contas o próprio radialista muitas vezes é considerado por alguns como alguém engraçado. Quando surge, por exemplo, no estúdio um de seus fãs, o desajustado Kent que havia contado a lorota de que sua namorada estava morta, o jovem aparece vestido como se fosse um fã de Guns N’ Roses. Afinal de contas, o que um aficionado por rock ‘n’ roll estaria fazendo ali senão cultuando um de seus ídolos do rock?
Muito além de Barry Champlain, existem outros personagens importantes nessa trama, um deles a ex-mulher do radialista, Ellen, interpretada por Ellen Greene. É com ela que vemos, mesmo que por alguns momentos, enquanto ele liga para ela, Barry vacilar em suas palavras, até mesmo gaguejar, faltando a determinação típica que demonstra diante do microfone. Outro nome presente é Alec Baldwin que interpreta Dan, um dos responsáveis pela rádio e por ampliar o programa de Barry para a cadeia nacional, além de constantemente buscar podar o radialista em seu ímpeto de falar tudo o que pensa.
É claro, observar Barry Champlain como alguém que, além de desferir murros em seus ouvintes, também dá a própria cara a tapa, não faz dele alguém acima de sua própria audiência, apenas o torna conhecido por aqueles que o ouvem e ajuda evidenciar o quão humanamente contraditório alguém pode ser.
Talk Radio — Verdades que Matam — filme que carrega um subtítulo que é praticamente um spoiler — traz à tona outra curiosa questão: a expressividade da opinião e suas devidas repercussões. Ao longo de quase duas horas de filme o expectador é exposto àqueles que dizem o que pensam sob o véu do anonimato de uma ligação e, ao contrário, Barry Champlain que pode ser caracterizado como uma figura pública formadora de opinião. O que isso ajuda a evidenciar é que (1) invariavelmente o desejo de expressividade existe em todos, mesmo que para alguns falte qualquer capacidade de articulação, mas (2) muito poucos o fazem de maneira aberta, não velada, sob o manto de algo que garanta seu anonimato. Todos desejam dizer o que pensam, nem estão prontos para as consequências que suas palavras podem causar.
É claro, observar Barry Champlain como alguém que, além de desferir murros em seus ouvintes, também dá a própria cara a tapa, não faz dele alguém acima de sua própria audiência, apenas o torna conhecido por aqueles que o ouvem e ajuda evidenciar o quão humanamente contraditório alguém pode ser. Como ele mesmo confessa: “Sou um hipócrita. Peço sinceridade e minto. Denuncio o sistema e comungo com ele. Quero dinheiro, poder e prestígio. Quero índices de audiência e sucesso. E não dou a mínima para vocês ou para o mundo. Essa é a verdade!
Em um pôster da época do lançamento do filme é possível ler: he exists because you listen, ou seja, ele existe porque você o escuta. Tal frase exemplifica com clareza a dependência de figuras como Barry Champlain com sua audiência, ele precisa de um público que o nutra com sua atenção (ou desprezo). Mas essa relação é interdependente, ao mesmo tempo que Barry precisa de sua audiência, sua audiência precisa dele. E por quê? Quem sabe projetar seus medos nele, a inveja dele ser aquilo que eles não são, por simplesmente discordar de tudo aquilo que ele diz, ou pela falsa familiaridade e proximidade que se gera ao ouvir diariamente aquela voz no rádio. Por isso talvez seja tão difícil ignorar Barry, apesar de seu claro mau-humor, é difícil virar a cara para ele, assim como apesar da falta de ilustração de seu público, não há como ignorá-los, apenas receber as ligações e conversar: “Neste programa dizemos o que tem de ser dito. É o que faremos aqui hoje. Nesta noite vale tudo. Quero ouvi-los, quero que digam tudo o que realmente pensam. O alvo está pronto. É só atirar.”
Talk Radio – Verdades que Matam (1988)
Direção: Oliver Stone
Roteiro: Oliver Stone e Eric Bogosian
Elenco: Eric Bogosian, Ellen Greene, Leslie Hope, John C. McGinley, Alec Baldwin, John Pankow, Michael Wincott, Robert Trebor, Tony Frank
Duração: 110 minutos.
Deixe um comentário