O filósofo alemão Immanuel Kant foi o centro de um bate-boca que terminou de maneira inusitada
Recentemente eu li uma notícia antiga publicada no portal G1 sobre um incidente no mínimo curioso. Em uma cena que mais parece saída de um filme do que de um supermercado, a cidade russa de Rostov-on-Don foi palco de um debate que terminou de forma pra lá de violenta. No centro da discussão não estava uma promoção, preços incorretos ou uma desavença na fila do caixa. De maneiras um tanto quanto peculiar o motivo do bate-boca era o seguinte: as complexas teorias do filósofo alemão Immanuel Kant.
Para quem não o conhece, Kant é reverenciado como uma das mais brilhantes mentes da filosofia de todos os tempos. Nascido em 1724 na pacata cidade de Königsberg, na época localizada no Reino da Prússia, o filósofo é muito famoso por ter escrito importantes obras. Entre elas A Crítica da Razão Pura (1781) e Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Além disso, se notabilizou por ter desenvolvido uma carreira como professor na universidade local, onde também foi reitor, e pelos seus passeios filosóficos. Afinal, Kant sempre foi um homem muito disciplinado, todos os dias saia no mesmo horário para caminhar. Sua pontualidade era tanta que os moradores da cidade ao virem o filósofo caminhando ajustavam os ponteiros de seus relógios.
Para além de sua rotina, é possível dizer com tranquilidade que as ideias de Kant já foram motivo de intensas discussões acadêmicas e intelectuais. Mesmo porque seus livros carregam ideias complexas e nem sempre simples de serem compreendidas. Há tantos admiradores famosos, tais como Arthur Schopenhauer, assim como detratores igualmente importantes, podendo-se citar Nietzsche como um deles. No entanto, raramente se imagina que debates filosóficos, ainda mais sobre a filosofia de Kant, possam escalar para a violência física. Mas foi exatamente isso que aconteceu.
Segundo relatos da imprensa local russa, dois homens engajaram-se em um debate acalorado sobre as teorias kantianas em um supermercado. A troca de argumentos foi tão intensa que em algum momento deixou o campo das ideias e entrou no terreno da agressão. O suspeito, não identificado pela polícia, sacou uma pistola e disparou balas de borracha contra seu rival, que acabou necessitando de atendimento hospitalar.
É curioso ler essa notícia poque o filósofo alemão ao se debruçar sobre diversos assuntos também desenvolveu debates no campo da moral. Kant propôs que a moralidade é derivada da razão. E que os seres humanos devem agir de acordo com um princípio que ele chamou de imperativo categórico. Este princípio afirma que devemos agir de tal maneira que possamos desejar que a máxima da nossa ação se torne uma lei universal.
Vamos esclarecer a questão. O imperativo categórico é uma regra moral de Immanuel Kant. A regra diz que devemos agir de maneira que gostaríamos que todos agissem. Além de sempre tratar as pessoas com respeito, nunca apenas como meios para alcançar nossos próprios objetivos. O imperativo categórico nos lembra da importância de manter o respeito e a racionalidade em nossas interações, especialmente quando discutimos ideias profundas e complexas. Em vez de recorrer à violência, devemos buscar a resolução pacífica e racional de conflitos, honrando a humanidade em nós e nos outros.
Além disso, há outro texto muito interessante de Kant que vale à pena ser comentado: Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento?. Este ensaio é uma peça central do Iluminismo e continua a ser relevante hoje. No texto Kant desafia as pessoas a pensar criticamente, a questionar autoridades e a buscar a autonomia intelectual. Sua mensagem é de coragem intelectual e um incentivo pela busca da liberdade de pensamento. Tanto que influenciou profundamente o desenvolvimento do pensamento moderno e das democracias liberais. Com o ensaio o filósofo alemão defende que a verdadeira liberdade só pode ser alcançada através da razão e do esclarecimento. Incentivando uma sociedade onde os indivíduos são pensadores autônomos e críticos.
Para além da filosofia kantiana, ao ser divulgada a notícia da confusão, não foi divulgado também o motivo em particular que levou a tal incidente. Ou seja, o teor da conversa. Saber que era uma discussão sobre Kant é algo. Mas seria interessante saber no que divergiram os debatedores. Será que estariam justamente discutindo sobre o pensamento moral dele? Ou sobre esclarecimento? É difícil imaginar que discussões sobre conceitos como o imperativo categórico possam levar à violência. No entanto, é importante considerar que a filosofia do pensador alemão aborda questões profundamente humanas e éticas. E que podem tocar em nervos sensíveis, especialmente em um contexto onde as opiniões são fortemente divergentes.
Em debates acalorados, principalmente aqueles que envolvem visões de mundo e crenças morais, as emoções podem se intensificar. A divergência sobre a interpretação das ideias kantianas, como a natureza do dever moral e a liberdade do indivíduo, pode ter sido o estopim para a agressão. Por mais que Kant fosse um homem crédulo no poder da razão humana, a racionalidade nem sempre impera quando deveria. Além disso, o contexto em que a discussão ocorreu — um supermercado — talvez não fosse o mais propício para um debate filosófico aprofundado. O que pode ter contribuído para a escalada da tensão.
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Também é interessante observar que a discussão que levou ao disparo de alguns tiros tenha ocorrido justo na Rússia, levando em consideração que Kant é um filósofo de origem alemã. Para matar a curiosidade, vale mencionar que, durante uma das muitas guerras que ocorreram na Europa, os russos ocuparam e administraram por algum tempo a cidade onde Kant vivia. E após a Segunda Guerra Mundial, a Rússia assumiu definitivamente a região onde ficava Königsberg, rebatizando a cidade de Kaliningrado. Todavia, até hoje Immanuel Kant é lembrando e referenciado na Alemanha. Recentemente, no tricentenário de nascimento do filósofo, o atual chanceler alemão Olaf Scholz prestou uma homenagem em uma publicação no Instagram.
De todo modo, o incidente em Rostov-on-Don serve como um lembrete inusitado de como as ideias filosóficas, mesmo aquelas concebidas para promover a razão e a moralidade, podem se tornar inflamadas em circunstâncias inesperadas. A filosofia de Kant, com sua ênfase na razão, ironicamente nos mostra que a racionalidade humana pode ser facilmente sobrepujada pela emoção e pela paixão, mesmo em um local tão prosaico quanto um supermercado.
Talvez a lição aqui seja que, enquanto buscamos entender e aplicar as teorias complexas dos grandes filósofos, devemos também estar atentos à maneira como conduzimos nossas discussões. A violência que surgiu de um debate filosófico sobre Kant demonstra a necessidade de promover o esclarecimento como definido por Kant: a coragem de usar a própria razão, o respeito pelas ideias dos outros e a busca por uma resolução pacífica dos conflitos. Sapere aude!
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