Em sua primeira média-metragem, Maicon Tenfen oferece uma experiência cinematográfica que navega entre o drama psicológico e o meta-comentário sobre o próprio ato de filmar
Faz bastante tempo que tenho acompanhado o trabalho do escritor Maicon Tenfen. Creio que o primeiro livro que li dele foi Quissama – Império dos Capoeiras, uns dez anos atrás. E desde lá me acostumei a ler seus romances que misturam personagens históricos e ficção, tais como Dinamene e A Vida Secreta de um Poeta e suas obras infantis como Lutz e Gandalina contra o Crocodilo Alado de Salone. Além de ter acompanhado seus mordazes textos de opinião publicados durante um tempo em um blog. Fiquei surpreso, quando descobri, um dia, que ele estava produzindo e dirigindo um filme. Ou melhor, eu não fiquei surpreso, fiquei curioso.
Canil Para Cachorro Louco é a primeira obra cinematográfica produzida e dirigida pelo escritor e agora diretor de cinema Maicon Tenfen. O filme, que é uma média-metragem, é uma experiência cinematográfica que navega entre o drama psicológico e o meta-comentário sobre o próprio ato de filmar. A produção carrega consigo uma estética desafiadora, que busca romper a quarta parede e explorar os limites da ficção e da realidade.
Canil Para Cachorro Louco é uma obra que desafia as convenções tradicionais do cinema narrativo, mergulhando em uma abordagem experimental que mistura meta-linguagem, drama psicológico e humor ácido. O filme oferece uma reflexão interessante sobre os limites da ficção e da realidade, além de um comentário social sobre a natureza humana.
O ponto de partida da trama é corriqueiro, mas o desenvolvimento do filme é surpreendente. Tudo começa com Genésio (Roberto Morauer), um professor universitário aparentemente comum. Aborrecido com seu casamento e fascinado com uma jovem secretária de seu trabalho, Carol (Stelar), vai atrás de uma garota de programa, Raquel (também Stelar), para satisfazer suas fantasias e desejos. O maior problema disso é que ele nem imagina que com essa escapulida, acabará por se envolver em uma teia de chantagem e assassinato. Acompanhado por um enigmático Diretor de cinema (Sergio Barreto), Genésio é forçado a lidar com decisões morais perturbadoras, especialmente ao ser confrontado com Jorge (Jozué Junior), que está envolvido em um plano de extorsão contra ele. À medida que os eventos se desenrolam, a narrativa oscila entre a realidade e um ficcional bastidor do próprio filme, com a equipe de filmagem aparecendo em cenas cruciais, fazendo o espectador questionar o que é real ou ficção.
A narrativa principal, que é basicamente um thriller psicológico, é perturbadora e inquietante. A relação entre Genésio e o Diretor é construída com tensão crescente, especialmente nas cenas em que Genésio é manipulado a participar de atos brutais. No entanto, a obra faz questão de subverter a expectativa do público ao quebrar constantemente o ritmo com cenas dos bastidores, onde a equipe de filmagem interage, discute e diverge até o limite em que as coisas saem completamente do controle.
Um dos aspectos mais ousados de Canil Para Cachorro Louco é o seu uso da meta-linguagem. O filme não se contenta em apenas contar uma história, mas frequentemente interrompe a narrativa principal para mostrar os erros, ensaios e improvisos da própria equipe de filmagem. Em determinados momentos, essa quebra é interessante, oferecendo ao espectador uma visão do caos criativo que acontece por trás das câmeras.
A frase que serve como título para o filme, “vivemos num canil para cachorro louco”, é repetida em dois momentos cruciais da narrativa, tornando-se um mantra que reflete a visão cínica do mundo que os personagens possuem. Esse “canil” é uma metáfora para a brutalidade e a selvageria que permeiam as relações humanas, em especial no contexto social representado no filme. Genésio, o protagonista, é um personagem que transita entre a passividade e a conivência. Ao buscar sair de sua rotina enfadonha, ele sabe o que faz e tem comando da situação. Mas, em seguida, vê gradativamente tudo saindo de seu controle, além de ser pressionado cada vez mais a agir contra seus princípios em nome da sobrevivência de sua imagem como professor universitário, marido, pai e chefe de família.
A narrativa principal, que é basicamente um thriller psicológico, é perturbadora e inquietante. A relação entre Genésio e o Diretor é construída com tensão crescente, especialmente nas cenas em que Genésio é manipulado a participar de atos brutais.
O filme parece sugerir que todos estão presos em suas próprias armadilhas morais, sendo forçados a lidar com os seus demônios internos e externos. O personagem do Diretor, em particular, representa a ambiguidade moral em seu auge, uma figura manipuladora que, ao mesmo tempo, questiona os próprios limites da ficção ao forçar Genésio a participar de suas ações.
Visualmente, Canil Para Cachorro Louco opta por uma abordagem minimalista, com ambientes simples e algumas variações de locações. Todavia, a utilização das cores nos diferentes momentos do filme, chama a atenção. Variando desde cores frias, até cores quentes, como que indicando distintos momento emocionais ou estados psicológicos do personagem principal. O uso da câmera em alguns momentos chega a ser desconcertante, com a equipe de filmagem visivelmente presente em muitos planos, o que é claramente intencional, mas que pode ser percebido como um “erro” de continuidade por parte de espectadores menos atentos à proposta metalinguística do filme.
Agora sobre as atuações. Algumas delas chamam bastante a atenção. É divertido e instigante as discussões nos bastidores provocadas pelas visões divergentes do assistente de direção (Jean Massanero) em relação ao Diretor. De maneira particular, posso dizer que o conflito entre os dois escala de tal modo que o resultado me surpreendeu tanto que dei um pulo da cadeira. Além de ter franzido a testa quando, a partir do conflito mostrado ali, surgiu uma reviravolta ainda mais surpreendente.
Todavia, um destaque interessante é que devido ao fato de a média-metragem oscilar entre a realidade e o fictício bastidor do próprio filme, os atores envolvidos no processo foram testados a viver múltiplos papéis na história. A atriz Stelar ao mesmo tempo que interpreta a jovem funcionária de uma universidade, Carol, faz o papel da garota de programa Raquel e também a atriz que nos bastidores se nega a fazer uma determinada cena do filme que está sendo rodado.
A frase que serve como título para o filme, “vivemos num canil para cachorro louco”, é repetida em dois momentos cruciais da narrativa, tornando-se um mantra que reflete a visão cínica do mundo que os personagens possuem. Esse “canil” é uma metáfora para a brutalidade e a selvageria que permeiam as relações humanas, em especial no contexto social representado no filme.
O ator Sergio Barreto que interpreta o Diretor e um professor, por outro lado, oferece uma performance mais carismática, quase caricatural, o que funciona bem dentro da proposta de meta-comentário do filme. Ele é, de fato, o manipulador por trás das cortinas, tanto na trama quanto na própria narrativa metalinguística, e suas interações com a equipe de filmagem adicionam uma camada de ironia e humor negro ao filme — tanto que é possível se questionar sobre as maluquices e as improvisações que os diretores não resolvem fazer durante a produção de seus filmes.
O destaque fica para a atuação de Roberto Morauer. As atuações, lideradas pelo protagonista que interpreta Genésio, são consistentes. Na medida que a trama avança, o personagem evolui, a tensão aumenta e Genésio vai sendo exposto cada vez mais a situações visivelmente inimagináveis por ele. O ator principal entrega uma boa performance, retratando bem o conflito interno de seu personagem, especialmente nas cenas mais intensas em que ele se vê forçado a agir contra seus próprios valores. A atuação dele é tão crível que enquanto expectador é possível se questionar se tudo aquilo ali contado é real ou apenas uma fantasia da cabeça do personagem vivido por ele.
Canil Para Cachorro Louco é uma obra que desafia as convenções tradicionais do cinema narrativo, mergulhando em uma abordagem experimental que mistura meta-linguagem, drama psicológico e humor ácido. O filme oferece uma reflexão interessante sobre os limites da ficção e da realidade, além de um comentário social sobre a natureza humana. Vale à pena dizer que a produção cinematográfica é uma adaptação de um dos contos do próprio Maicon Tenfen e que foi publicado em 2009 na coletânea Casa Velha Night Club.
Entretanto, é preciso alertar que esse filme pode não agradar a todos os públicos. Aqueles que buscam uma narrativa coesa e envolvente podem se frustrar com as constantes quebras de ritmo e a fragmentação de uma trama que oscila entre a história que está sendo filmada e os bastidores do próprio filme. No entanto, para os espectadores que apreciam experimentações e discussões metalinguísticas, Canil Para Cachorro Louco oferece uma experiência rica e provocativa.
Tive chance de assistir ao filme em sua estreia em setembro de 2024 na Secretaria de Cultura e Relações Institucionais de Blumenau. Havia cerca de trezentas pessoas na plateia e quando o filme encerrou, terminaram os créditos e as luzes foram acesas, todos se levantaram e aplaudiram de pé o diretor e os atores. Infelizmente, por enquanto o filme não deve ser disponibilizado em alguma plataforma de streaming ou mesmo YouTube, visto que o diretor pretende inscrever a média-metragem em alguns festivais e premiações de cinema. O que resta é aguardar. E esperar pelo próximo filme de Maicon Tenfen.
Canil para Cachorro Louco
Direção: Maicon Tenfen
Roteiro: Maicon Tenfen
Ano: 2024
Duração: 54 minutos
Elenco: Roberto Morauer, Sergio Barreto, Ingelore Liesenberg, Stelar, Jozué Junior, Jean Massanero
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