Em entrevista ao blog Razão Cult, o quadrinista Thiago Souza fala sobre influências, arte, cultura, mercado editorial e, claro, quadrinhos
Thiago Souza é um quadrinista brasileiro independente, cuja obra tem uma característica muito peculiar: ele retrata, em suas histórias em quadrinhos, ratos antropomorfizados que parodiam personalidades e refletem, de maneira tanto cômica quanto dramática, a vida das pessoas. Tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente durante a Feira do Livro de Rio do Sul 2024. Durante o evento, fomos colegas de estande e também de apartamento, pois ficamos hospedados na casa do escritor Johan Henryque. Em contato com a obra de Thiago e me divertindo com suas histórias, o convidei para uma entrevista para o blog Razão Cult. Ele aceitou na hora, e o resultado da nossa conversa segue abaixo.
Quando começou sua relação com as histórias em quadrinhos e quando você tomou para si a ideia de se tornar um quadrinista?
Leio quadrinhos desde muito pequeno, no começo eram os quadrinhos de heróis, principalmente X-men, Homem Aranha e Batman, além de outros. Mas ali pelos 11 anos de idade me dei de frente com as revistas antigas da Chiclete com Banana através de primos mais velhos. E ali a cabeça explodiu com as possibilidades que se podia fazer em um quadrinho e tal, as temáticas, a escatologia, o humor. Resolvi que também queria fazer algo naquele segmento. Como já gostava de desenhar também, comecei emulando os traços do Angeli e daqueles desenhistas, depois fui conhecendo mais coisas em relação ao Underground dos quadrinhos e tal, mas no começo foi essencialmente isso, a Chiclete e a revista Mad.
E qual sua formação?
Sou formado em Administração pela FURB. Mas, nunca tive curso ou formação em desenho e pintura, gostaria até de ter tido, porém acabou não acontecendo. Sempre fiz desenhos e os guardava nas gavetas, poucas pessoas viam. Nessa época já comecei a fazer pequenas histórias em quadrinhos. Na época de faculdade comecei a desenvolver o arcabouço de conhecimento que comecei a buscar — através de muitos livros, pelo acesso a biblioteca da FURB e muitos filmes. Enquanto me formava na Universidade, eu fazia em paralelo esta formação cultural, em conhecer cada vez mais coisas e pesquisar sobre arte, cultura, filmes e muitos livros de literatura.
Qual a importância dos quadrinhos na sua vida?
Os quadrinhos foram a porta de entrada nas leituras. Através de referências que eu via nas histórias fui buscando de onde vinha isto, por isso esta junção com o cinema e a literatura. Anos mais tarde, já trabalhando, o cinema me levou novamente aos quadrinhos. Através do documentário do “CRUMB”, um belíssimo documentário que fala da trajetória do cartunista americano Robert Crumb, voltei a procurar os quadrinhos do Underground americano. Comecei novamente a conhecer uma nova frota de autores, e daí para Will Eisner e os cartunistas franceses. E comecei a procurar tudo sobre estes caras. Nesse tempo também a desenvolvi pinturas baseadas em cartuns e estudei a arte também com livros sobre Van Gogh, Picasso, renascentistas e todo o mais. Foi uma volta aos desenhos nessa época, já que tinha abandonado por um tempo e focado mais nos livros e filmes.
Certo, e por que resolveu fazer quadrinhos retratando ratos?
Aos 27 anos, fui morar em São Paulo para trabalhar com vendas e empresas. Nessa época, alguns dos meus amigos já conheciam meus desenhos, e quando me mudei, criei um perfil nas redes sociais para manter contato com eles. No Facebook, vi uma oportunidade de compartilhar meus desenhos e alcançar mais pessoas. Sempre sonhei em ser cartunista de jornal e criar tirinhas, e ali pude começar a desenvolver isso. No início, fazia desenhos aleatórios, mas depois comecei a trabalhar em um personagem definitivo, pois meus traços ainda lembravam outros cartunistas que eu admirava, e eu não conseguia encontrar o tom certo para os textos de humor. Foi então que tive a ideia de unir características de animais com o corpo humano — o que chamam de antropomorfismo — para falar sobre o cotidiano com humor sob a perspectiva de um animal. Assim surgiu a ideia do rato, um animal com uma conotação subversiva, até “nojenta”, que seria perfeito para satirizar nosso dia a dia.
Como é o processo de composição de suas histórias? Você escreve um roteiro? Depois começa a desenhar os quadrinhos? Como é que funciona?
Geralmente, quando faço as tirinhas, já começo com uma ideia mais ou menos pronta na cabeça; então, vou desenvolvendo o roteiro e a narrativa junto com os desenhos. Mas, no caso de histórias maiores, crio um roteiro antes. No início, no primeiro volume, as histórias eram mais curtas, de no máximo uma página, então era mais simples desenvolver a narrativa. Ao longo dos volumes, comecei a trabalhar em histórias mais longas, o que trouxe a necessidade de criar um roteiro prévio para aprimorar a narrativa gráfica. No começo, eu tinha dificuldade em elaborar os quadros e precisava de referências de outros quadrinhos. Com o tempo, o processo foi ficando mais natural. Os Ratos passaram a ganhar vida própria, o que facilitou o desenvolvimento. Ainda assim, sempre estamos estudando algo novo e aplicando o que aprendemos a partir de outras leituras. Basicamente, costumo partir de uma ideia de tira ou piada já bem definida e trabalho a partir dela. Às vezes, surge uma imagem na minha cabeça, e então ajusto o texto para acompanhar. Por ser um trabalho voltado para o humor, sinto mais facilidade em desenvolver, mas sempre busco me desafiar um pouco mais a cada vez.
A inspiração é importante? Ou é mais importante a disciplina?
Ambos são essenciais, geralmente. A inspiração é o que te impulsiona — a ideia, o desejo de criar; e a disciplina é o que permite desenvolver tudo depois. Normalmente, o processo é o seguinte: já tenho uma ideia estabelecida para cada novo volume, a temática em si, e vou desenvolvendo as ideias na cabeça e, às vezes, já rascunhando no papel. Assim, a parte gráfica vai tomando forma, com a definição dos quadros, das páginas e da sequência. Com tudo basicamente pronto no lápis, vem a fase de finalização da arte, quando a história e os desenhos realmente ganham vida. Nessa etapa, a disciplina se torna fundamental, pelo menos para mim, pois exige tempo e paciência. Costumo fazer uma página por dia, finalizando com nanquim para os contornos e tinta para os fundos em preto. Essa é também a parte mais divertida, pois é quando tudo ganha forma. Como o roteiro e as sequências já estão prontos, basta preencher e ver a arte ganhar vida. Passo horas nisso, muitas vezes ouvindo música, o que torna o processo ainda mais prazeroso.
Conferindo seu quadrinho Os Ratos, dá pra ver que as histórias tem um número de referências sem fim: cantores, astros do rock, pintores, movimentos filosóficos. É daí que surgem as ideias para suas histórias? Ou melhor, quais são suas fontes de ideias para as histórias que você conta?
Basicamente, minhas histórias abordam questões do cotidiano, ironias da vida e, às vezes, um humor non-sense. Em grande parte, refletem o que realmente penso, só que de forma exagerada. As referências também são pontos de partida para muitas histórias. Como sou fã de escritores, música e outros quadrinhos, acabo incorporando tudo isso nas narrativas, pois são elementos que aprecio muito. A ideia do jazz, por exemplo, é algo que sempre quis incluir, e embora seja um estilo pouco explorado nos quadrinhos, sempre imaginei os ratos como músicos de jazz — por isso ele aparece em todas as edições. Outro personagem recorrente é o Le Petit Rat, o “pequeno rato” em francês, inspirado nas histórias de Calvin e Haroldo, de Bill Watterson. E assim vai: diversas influências que integro na minha visão, combinando reflexões sobre movimentos de arte, cinema e outras referências. É um amálgama das coisas de que gosto, misturado com discussões irônicas do cotidiano. É mais ou menos por aí!
E o mercado de quadrinhos no Brasil, como você enxerga ele?
Praticamente não existe um mercado consolidado de quadrinhos no Brasil. Existe, sim, uma cena muito forte, com vários autores, alguns mais famosos e outros na linha independente — que são muitos. As editoras que lançam quadrinhos também são, em sua maioria, independentes e geralmente publicam obras com apelo comercial ou de autores já conhecidos. As editoras grandes, por outro lado, focam mais em autores estrangeiros e em novas edições de quadrinhos clássicos. Eu percebo que as editoras consideram arriscado apostar em cartunistas iniciantes, o que explica a grande quantidade de pessoas que se autopublicam, já que o mercado formal para elas, de fato, não existe. Foi o meu caso: me lancei na cena de quadrinhos por conta própria. Hoje em dia, o acesso a gráficas é melhor do que no passado, quando era praticamente impossível para alguém bancar sozinho uma edição com várias cópias. Com a falta de recursos, surgiram gráficas menores que oferecem tiragens reduzidas, o que abriu uma pequena oportunidade para a autopublicação. Em 2017, eu ainda não sabia como funcionava esse processo. Fui atrás de uma gráfica para imprimir o primeiro volume, mas o pagamento geralmente era à vista. Guardei dinheiro por dois anos e, em 2019, lancei meu livro. Desde então, comecei a participar de eventos e feiras para vendê-lo e a conhecer pessoas que também fazem parte dessa cena de quadrinhos e artes, presente em várias partes do Brasil, desde Santa Catarina até São Paulo e Rio Grande do Norte. Outra dificuldade é a falta de um público mais amplo. No Brasil, o consumo de quadrinhos é muito nichado e específico. Diferente da França, Bélgica, Estados Unidos e Japão, onde o formato alcança todas as idades e diversos públicos. Aqui, os quadrinhos ainda são vistos muito como material infantil, e poucas pessoas dão continuidade ao hábito de ler quadrinhos na adolescência ou vida adulta. Eu mesmo me afastei por um tempo e depois voltei, fazendo quadrinhos underground, que é um nicho dentro de outro nicho — totalmente inviável financeiramente, mas é o que gostamos de fazer.
Você costuma participar de muitas feiras literárias, de quadrinhos e eventos variados… é através das feiras que você consegue que seu trabalho chegue com mais facilidade ao público leitor?
Cem por cento! Foi através desses eventos que conheci mais pessoas e pude divulgar meus livros. Tenho até um site e algumas lojas independentes que vendem meus livros em São Paulo e Curitiba, mas boa parte dos leitores acaba me encontrando depois de me ver em algum evento. Desde 2019, com o lançamento do Volume 1, não parei de participar de feiras, exceto durante a pandemia. No início, participei de feiras de gibis e livros e, logo depois, de feiras de artesanato e vinil — na verdade, qualquer feira que me permitisse participar, eu estava lá. O bom disso foi que alcancei públicos totalmente diversos. As feiras de vinil, por exemplo, geralmente ocorrem em shoppings, com um grande fluxo de pessoas, e sempre deram certo para mim. Em Blumenau, por exemplo, o resultado foi sempre muito bom; o mesmo em Florianópolis e Joinville. Hoje, também fazemos feiras de vinil em São Bento do Sul e em Guarapuava, no Paraná, e sempre conseguimos alcançar novos públicos, com boa venda nesses locais, o que aumenta a divulgação do trabalho. Nas feiras de artesanato, comecei nas Feiras da Servidão, em Blumenau, onde sempre havia gente interessada. Depois, participei de feiras de livros, como em Timbó, onde os ratos sempre foram muito bem recebidos. Em grandes feiras de quadrinhos e de cultura geek, comecei a ser aprovado para eventos importantes em São Paulo, o que me deu uma entrada na cena dos quadrinhos. Ali, conheci muita gente que se tornou amiga até hoje. No universo dos quadrinhos, é muito importante ser visto — essa turma valoriza muito o contato direto. Com o tempo, participei de mais e mais grandes eventos, sem deixar de fazer os menores também, desde shows de rock e bares até eventos maiores, como a Bienal de Curitiba, Butantã Gibicon em São Paulo, CCQ (Circuito Catarinense de Quadrinhos) em Florianópolis, e agora o BCX em Blumenau. Alguns eventos surgem junto com a nossa trajetória, e é sempre incrível fazer parte disso.
Quando eu era pequeno via por aí um monte de bancas com jornais, revistas e quadrinhos, hoje em dia isso é coisa rara. Minha pergunta é a seguinte: a gradativa morte dos impressos em favor das mídias digitais tem impactado os quadrinhos?
Em partes. O público em geral de quadrinhos não gosta de ler em digital. Não são todos, mas o que vejo por aí, uma grande maioria prefere ter algo físico em mãos. O quadrinho é uma experiência diferente, você ler quadro a quadro com a tela aumentada distorce um pouco a visão geral da história ou da narrativa. Mas é só uma opinião minha. Eu já li nos dois formatos, prefiro impresso. Claro que hoje você consegue maior propagação fazendo seu livro em arquivo digital, até vender em valor mais acessível, mas acho que funciona mais para autores já consagrados com público já estabelecido, ou grandes editoras. Posso estar errado também. As bancas cada vez mais tem menos. Em São Paulo ainda há e eles vendem revistas novas e antigas, quadrinhos e jornal. Há também até bancas especializadas em quadrinhos, mas bem pouco, a maioria que se acha hoje é em sebos ou lojas especializadas, e isso mais nos grandes centros. Na nossa região, em Santa Catarina, esquece! Muito poucas. Mas há esta crescente de autores independentes se lançando, com acesso a gráficas e editais, assim como financiamentos coletivos. Então há um caminho. Eu sempre tento fazer tudo por conta própria, mas existe ferramentas que se pode buscar para ajudar nisso, e pode-se usar mídias digitais também para lançar os livros, e assim trabalhar com ambos.
Dos vários volumes de Os Ratos, qual seu favorito? Qual deles você indicaria, para alguém que não conhece seu trabalho, ler?
O último volume sempre é o que está mais em sintonia com o estilo do momento, mais elaborado e mais definido — ou eu poderia dizer que o próximo será o meu favorito e, quando for lançado, dizer que o próximo a ele será… Assim Picasso falava sobre suas obras: “Qual sua obra favorita?” “A próxima!” Ainda assim, tenho um carinho especial pelo primeiro livro, pois foi um trabalho muito árduo e suado. Hoje ele está esgotado, mas recentemente reeditei para uma nova impressão e tiragem, então foi divertido reviver os dias em que eu estava montando e desenhando. Gosto de todos os volumes, pois cada um tem suas histórias particulares relacionadas a aspectos da vida — algo que, acredito, acontece com todo autor. Tenho um apreço especial pelo Volume 2, feito logo em sequência ao primeiro, abordando temáticas diferentes; pelo Volume 3, que foi um dos mais demorados devido aos desenhos de orquestra e instrumentos musicais; e pelo Volume 4, que foi desenhado durante a pandemia. Já o Volume 5, que é o mais recente, é de fato o mais bem-feito narrativamente. O volume extra, sobre a viagem a Portugal, foi muito legal de escrever e desenhar. E, por fim, o próximo, o Volume 6, já está pronto, aguardando para ser lançado em 2025.
Jogo rápido: quadrinista favorito?
Robert Crumb, que é americano. Angeli, que é brasileiro. E Frank Margerin, que é francês.
E qual seu quadrinho favorito?
Nova York, de Will Eisner, pois aqui tem tudo para servir como referência a qualquer coisa em relação a quadrinhos e narrativa gráfica, é quase didático.
Qual conselho você daria para alguém que tem o interesse em escrever histórias em quadrinhos?
Gostar muito de fazer quadrinhos e desenhar, saber ao certo o que você quer contar, seja drama, humor, ficção; ter uma temática e narrativa bem estipulada e começar com pequenas histórias, sejam curtas ou tirinhas. Nunca comece pensando em uma história longeva com universos, vá desenvolvendo aos poucos, pois demanda muito tempo e, se você começar logo encarando umas 100 páginas, é muito fácil de você largar ou enjoar do projeto — o que não é regra. Você pode fazer como quiser também, mas falo por experiencia, quadrinhos demandam muito tempo e é importante no começo você estipular histórias e terminar, nem que comece por capítulos pequenos que se fecham. Com o tempo você vai criando estrutura para se aventurar e desenvolver melhor seu traço, aí as possibilidades são infinitas, pois com uma folha em branco na sua frente, tudo é possível dali pra frente.
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