Crônica | Vovó, livros e histórias em quadrinhos
Como o estímulo constante da minha avó e um ambiente doméstico favorável e incentivador cultivou em mim o apreço pela leitura

Todo leitor tem um momento inicial de sua vida no universo da leitura. Sempre considerei que o meu havia sido em uma tarde quente e de marasmo aos meus treze anos. Estava deitado na minha casa, sem fazer nada, então tive um ímpeto estranho de me levantar e ir até a biblioteca municipal de minha cidade. Resolvi que faria uma carteirinha e pegaria um livro para ler. Fui lá, fiz isso e voltei para casa com um exemplar de Dom Quixote debaixo do braço. Umas semanas depois, devolvi o livro e, influenciado pela música Admirável Chip Novo da Pitty, resolvi ler Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Assim, iniciei minha jornada no universo literário e que me levou a ter uma estante com centenas de livros, trabalhar em uma editora universitária, publicar contos e ter este blog. Ou pelo menos eu considerava que havia sido aquele momento aos treze anos como definidor da minha trajetória como leitor até aqui. Mas eu estava errado.

Algum tempo atrás, quando minha mãe remexia em algumas quinquilharias na casa dela, incluindo livros e outras coisas que me pertenciam, ele me mostrou uma revista em quadrinhos. Não era uma revista qualquer. Tamanho grande, colorida, uma edição especial. Era um gibi do personagem Horácio. Para quem não conhece Horácio, ele é um personagem criado por Mauricio de Sousa e é um simpático filhote de tiranossauro. Durante muito tempo ele foi publicado em tiras diárias, mas o exemplar que minha mãe resgatou sei lá de onde, era um compilado com as melhores histórias em quadrinhos dele.

Confesso que fiquei fascinado ao ver aquele gibi bem na minha frente. Afinal, muitas memórias afetivas vieram à tona. Fazia anos que não via aquele exemplar, nem lembrava mais quando o tinha visto pela última vez. Mas eu sabia muito bem que estava diante de algo que tinha um valor inestimável para mim. Durante minha infância, talvez desde os três ou quatro anos, lembro de passar horas folheando as páginas de histórias em quadrinhos. Eu nem lia e nem sabia ler, mas observando as ilustrações, criava diversas histórias dentro da minha cabeça.   

Minha avó, que morava longe, no Rio de Janeiro, costumava me enviar cartas, cartões postais e quadrinhos. Demorei para dar importância para isso. E para compreender o gesto dela. Mas hoje, depois de décadas, fica evidente a importância disso.

É claro que eu levei o gibi do Horácio para casa. E é claro que folheei e reli todas as páginas, todas as histórias em quadrinho. Como eu disse, Horácio é um simpático filhote de tiranossauro. Ele foi abandonado ao sol quando ainda era um ovo. Curiosamente, apesar de sua espécie ser carnívora, não come carne, sendo vegetariano e adorando comer alface. Além disso, ele é extremamente gentil, perspicaz e reflexivo. Tem amigos, tem paqueras, vive boas e divertidas aventuras. E, sem dúvida nenhuma, depois de reler todo o gibi, considero como o melhor personagem do Mauricio de Sousa.

Depois de reler aquelas histórias, fiquei pensando que meu embarque no mundo da leitura não havia ocorrido aos treze anos com Dom Quixote, mas que esse processo já havia se iniciado muito antes com aquela revista do Horácio. E fiquei refletindo também sobre minha avó. Afinal, o gibi havia sido um presente dela lá em meados dos anos 90, quando eu ainda era uma criança. Minha avó, que morava longe, no Rio de Janeiro, costumava me enviar cartas, cartões postais e quadrinhos. Demorei para dar importância para isso. E para compreender o gesto dela. Mas hoje, depois de décadas, fica evidente a importância disso.

Horácio é um personagem criado por Mauricio de Sousa.

Afinal, minha avó, de uma maneira ou de outra, buscava me estimular no interesse pelo universo das histórias, tanto aquelas das cartas que enviava, quanto dos quadrinhos que me presenteava. E esse estímulo foi constante. Afinal, ao longo de toda minha infância e parte da minha adolescência, recebi dela, pelos Correios ou quando vinha me visitar, quadrinhos, mas não somente. Ganhei de presente também diversos livros e até mesmo uma enciclopédia. Tudo isso serviu para fomentar em mim um mundo lúdico com diversas histórias e personagens únicos e cativantes.

Hoje, olhando para trás, e pensando em todos os livros que li e que tenho lido, vejo aquele momento que com treze anos peguei meu primeiro livro na biblioteca pública como sendo parte de uma trajetória que já vinha percorrendo no universo da leitura. Antes dos livros propriamente ditos, já havia lido muitos quadrinhos do Pato Donald, Tio Patinhas, Zé Carioca, Pantera Cor-de-rosa, Homem Aranha, Capitão América, Turma da Mônica e, claro, do Horário. Já tendo sido embutido em mim o gosto pela leitura, tornou-se natural que, na medida em que crescia, meus gostos e interesses variassem. Com o amadurecimento da minha personalidade, meu interesse por leituras mais densas, ocorreu. Foi assim que peguei aquele exemplar de Dom Quixote, depois Admirável Mundo Novo, um dia uma biografia sobre Freud, uma obra como A Cura de Schopenhauer, até chegar em livros como A República de Platão, O Mito de Sísifo de Albert Camus ou mesmo a Crítica da Razão Pura de Imannuel Kant.

Hoje vejo o quão fundamental foram esses exemplos advindos da minha avó e dos meus pais. Sem eles não estaria aqui em frente de um computador redigindo este texto. Talvez não estivesse trabalhando com a publicação de livros e muito menos redigindo os meus próprios livros.

Além disso, não posso me esquecer, pois eu acabaria sendo injusto, o ambiente do lar também foi fundamental. Meu pai é psicólogo e algumas das mais antigas lembranças que tenho dele é lendo livros no sofá de casa ou frequentando a livraria. Já minha mãe também costumava ir semanalmente a biblioteca para ler revistas como Veja, IstoÉ e Época — além de literalmente brigar comigo, no início da minha pré-adolescência, para que eu lesse mais, ou melhor, lesse livros. O estímulo constante da minha avó e um ambiente doméstico favorável e incentivador cultivou em mim o apreço pela leitura.

 Hoje vejo o quão fundamental foram esses exemplos advindos da minha avó e dos meus pais. Sem eles não estaria aqui em frente de um computador redigindo este texto. Talvez não estivesse trabalhando com a publicação de livros e muito menos redigindo os meus próprios livros. Enxergo que aquele quadrinho do Horácio foi fundamental para tudo isso. Mas que o constante reforço positivo das minha própria avó e pais, além de uma série de outras pessoas que surgiram em minha vida ao longo dos anos, permitiu que permanecesse acesa a chama do interesse que me leva à sebos, livrarias e a rabiscar com palavras um pedaço de papel.

Minha avó, que sempre foi muito carinhosa e cuidadosa com os presentes que me dava, sempre ou quase sempre que me enviava livros, gibis ou revistas, fazia questão de enviar junto uma carta. Mas algumas vezes, em vez de uma carta, redigia uma dedicatória diretamente naquilo que estava me enviando. Foi assim com o quadrinho do Horácio. Agora toda vez que pego esse gibi, que está na minha estante, a primeira coisa que faço é virar a primeira página para encontrar na parte interna de capa as seguintes palavras:

“Tudo passa sobre a Terra. A cada dia é um tempo de sua vida que passa sobre você; Se Deus quiser, todas as fases de sua existência terrena você passará com muita Paz-Saúde-Felicidade-Êxitos em seus objetivos, seus propósitos, seus ideais… E Deus estará sempre, sempre ao seu lado. ELE será o seu MESTRE, o seu PAI e o seu AMIGO.

Vovó Lourdes
Joinville – SC
29.12.1996

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