Uma mosca chamada Sócrates

Uma mosca chamada Sócrates
Declarado pelo Oráculo de Delfos o mais sábio entre os atenienses, Sócrates permanece como um dos mais fascinantes personagens da filosofia

Sócrates, aquela mosca de Atenas, como ele mesmo se intitulava, foi um homem curioso. Teve uma longa vida, ganhava pouco, bebia muito e irritava o populacho com suas intermináveis perguntas. Não era rico, mas vivia como um bom aristocrata.  Afinal, gozava de todo o seu tempo somente para pensar e conversar. E apesar de cultuar Apolo, não era belo. Entretanto, para o mais sábio entre os atenienses – pelo menos era isso que o oráculo de Delfos o considerava – beleza não era um ponto fundamental em sua vida. A sabedoria bastava. Dedicou sua vida inteira a investigar os outros, exercendo assim o conhece-te a ti mesmo. No fundo, como todo bom pensador deve ser, era irônico. Infelizmente, alguns poucos atenienses cansados de aturar tal homem que tanto perguntava, ocultando a zombaria presente em tais perguntas, resolveram dar cabo dele, levando-o a um julgamento.

Quanto a esse julgamento sabe-se, por meio dos diálogos de Platão, mais em especifico Apologia, que Sócrates aceitou com clemência o resultado de sua condenação a morte. Afinal, aquele ancião, apesar de tudo, ou seja, de considerar em verdade injusta e despropositada sua sentença, acreditava ainda sim na democracia ateniense. Questão curiosa essa última. Pois, afinal, o que leva um homem com tanta passividade e calma a aceitar sua morte? Com certeza projetos ulteriores que o levassem a ser considerado de fato um grande homem, um sábio, ou até mesmo um santo, em ocasiões futuras, tanto próximas quanto distantes de sua época. A se levar em conta tal argumentação Sócrates merece aplausos. Afinal, se foi realmente esse seu projeto interno, ele se concretizou.

Como todo bom pensador deve ser, Sócrates era irônico. Infelizmente, alguns poucos atenienses cansados de aturar tal homem que tanto perguntava, ocultando a zombaria presente em tais perguntas, resolveram dar cabo dele, levando-o a um julgamento.

Entretanto, especulações à parte, nos voltemos aos eventos de real importância. O fato de um julgamento contra Sócrates deve-se em grande parte a um aspecto circunstancial na qual estava envolvida Atenas naquele período, cerca de 400 a.C. Aquela cidade-estado já não era a mesma que outrora havia sido poderosa e havia se expandido por meio do comércio marítimo. Pelo contrário, Atenas era uma cidade decadente e a democracia que seu povo tanto se orgulhava havia tornado-se simplesmente uma palavra vulgar, repetida incessantemente por todos, mas realmente não conhecida por ninguém – da mesma forma como ocorreu com os revolucionários franceses que tanto buscavam liberdade sem realmente conhecê-la para no fim cometerem somente tiranias.

Levemos em conta ainda que a democracia apregoada com tanta veemência naquela Atenas era somente praticada por uma parcela minoritária da população. Afinal, dos quatrocentos mil atenienses daquele período, pelo menos duzentos e cinquenta mil eram escravos e os que restavam, cento e cinquenta mil, destes apenas uns poucos realmente compareciam nas assembléias gerais onde eram discutidas as diretrizes que o Estado deveria seguir. Aliás, derrotados os atenienses naquele período em uma guerra contra os espartanos, a famosa Guerra do Peloponeso, sentiam-se enfraquecidos e envergonhados. Afinal, como podia homens livres, ou melhor, a democracia ter sido derrotada pela tirania que era Esparta? Realmente, havia algum erro ali.

Ressaltados esses aspectos não é de se admirar que em meio a essa Atenas decadente tenham buscado alguma espécie de, digamos assim, bode expiatório a tudo aquilo que vinha ocorrendo àquela antes imponente cidade. Uns poucos viram então em Sócrates e em sua postura questionadora e sarcástica a personificação dessa decadência ou corruptor das estimas morais atenienses. Sua filosofia e modos passaram a ser odiados até que por fim veio a acusação da inserção de novos deuses a cultura grega e o embriagamento da juventude pelo gosto de longos debates onde tudo era examinado, desde os fundamentos da polis até o que é justiça. Para Anito, Meleto e Licon, seus acusadores, o melhor e único destino para aquele velhaco era a morte, nada mais do que isso.

A Morte de Sócrates, pintura de 1787 do pintor francês Jacques-Louis David

Sócrates então, com seus setenta e dois anos, foi posto frente ao júri ateniense. Com sua retórica, maneira persuasiva, raciocínios e argumentações poderia facilmente ter se libertado de todas as acusações postas sobre seus ombros. Entretanto, preferiu agir de maneira diferente. Foi agressivo em relação aos seus juízes, causando inquietação durante o julgamento. Em verdade, a grande questão, pelo menos a questão mais aparente, é que Sócrates de maneira alguma pretendia refutar suas ideias. Preferia manter-se fiel ao seu próprio “idealismo juvenil”, baseado na rebeldia e desobediência civil, do que rejeitar tudo aquilo que vinha pregando durante toda uma vida.

A questão que se centra embebida em meio a todo esse idealismo socrático, ou seja, da pessoa de Sócrates, é que com sua dialética aquele ancião buscava por abaixo todo o edifício daquilo que os gregos mais valorizam: a Polis. Visando assim desmentir e demonstrar o quando eram falsos e carregados de hipocrisia determinados valores que os atenienses seguiam e consideravam como os mais importantes em suas vidas. Os cidadãos, é claro, teriam glorificado Sócrates se ao contrário disto ele tivesse na verdade, com sua popularidade, ajudado a restaurar, frente à juventude, velhas crenças no politeísmo em vez de, com sua crença em um único deus, Apolo, feito ainda mais ruir esse sistema. Mas era convicto de sua racionalidade e da sua busca pela verdadeira virtude.

Em verdade era esse seu grande objetivo, o verdadeiro conhecimento das coisas. Somente o possuidor deste tinha a possibilidade de agir bem, enquanto aquele que ignorava esse verdadeiro conhecimento, acabaria praticando o mal. E Sócrates, bem, em sua sábia e prepotente arrogância, acreditava ser portador desse verdadeiro conhecimento. Questões morais não deveriam mais ser analisadas por meio de convenções ou circunstâncias, variando de acordo com costumes, concordatas e mesmo interesses pessoais, como acreditavam os sofistas. Mas sim tendo como objeto norteador do homem a racionalidade. Com ela se elucidaria qualquer problema dando luz à verdadeira natureza de determinada questão proposta, fosse relativo à política, coragem, justiça ou fosse o que fosse. Nesse sentido a justiça se daria dentro de um âmbito ético, norteado justamente por essa racionalidade visando alcançar o verdadeiro conhecimento das coisas e por consequência sempre o bem.

Sócrates buscava por abaixo todo o edifício daquilo que os gregos mais valorizam: a Polis. Visando assim desmentir e demonstrar o quando eram falsos e carregados de hipocrisia determinados valores que os atenienses seguiam e consideravam como os mais importantes em suas vidas.

Infelizmente, apesar da beleza contida em tal raciocínio acerca da justiça, lhe faltou um pequeno e insignificante detalhe: objetividade. Algo que demonstrasse ao populacho, ou ainda mais naquele momento em que Sócrates mantinha-se de pé em frente ao júri ateniense, algo que provasse a esses de maneira palpável, ou pelo menos a olhos nus, que o verdadeiro bem a ser feito naquele instante era poupar aquele ancião da morte coroando-o como o mais sábio. Que tristeza essa falha na dialética socrática de ter ficado, ainda sim, tão a mercê, mesmo se colocando contra isso, da subjetividade de cada um.

O que tudo isso prova? Maldito sempre é o sábio que ensina ao povo sem que este esteja pronto para suas ideias. A mais, após tudo isso, não a nada mais a ser dito, senão a citação de umas das mais belas passagens da literatura mundial presente em um dos diálogos de Platão: “foi o fim de nosso amigo, a quem posso sinceramente chamar de o mais sábio, mais justo e melhor de todos os homens que conheci.”

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