Com um enredo que equilibra tragédia e comédia, A Noiva Cadáver se estabelece como um dos grandes clássicos da filmografia de Tim Burton
Faz alguns anos que estabeleci uma regra pessoal: a regra dos quinze. Segundo a regra qualquer livro, filme, jogo eletrônico, enfim, produto cultural de entretenimento que eu tenha consumido há quinze anos ou antes dos meus quinze anos de idade, talvez não deva ser consumido novamente, mesmo que exista uma forte memória afetiva. Costumo fazer isso porque as minhas perspectivas de adolescentes eram muito diferentes das minhas atualmente. Ou porque ao longo de quinze anos, muito em mim mudou, de modo que determinadas ideias já me são estranhas e aquilo que antes gostava muito já não me agrada ou pode não me agradar tanto.
Assim, evito e tomo cuidado para não macular a memória de livros, filmes e jogos os consumindo novamente. Ou pelo menos eu tento. Porque de vez quando os revejo e, por vezes, retiro da minha lista de boas memórias. Porém, tempos atrás adquiri um livro intitulado O Estranho Mundo de Tim Burton de Paul A. Wood. A obra é uma grande coletânea de artigos que esmiúçam a filmografia de Burton, trazendo detalhes de elenco, escolhas do diretor, motivações que levaram o filme a existir e toda informação possível e curiosa sobre cada um dos filmes ali comentados.
A história se passa no século XIX, provavelmente durante a Era Vitoriana. Victor Van Dort (dublado por Johnny Depp), um jovem de uma família rica, está prestes a se casar com Victoria Everglot (Emily Watson), filha de uma família aristocrática falida.
Adquiri esse livro justamente com o intuito de, além de ler sobre os filmes, assisti-los novamente. Mas, ao fazer isso, esbarrei na minha própria regra dos quinze. Afinal, muitos dos filmes desse diretor cinematográfico, e por quem tenho muito carinho, foram assistidos na minha infância e adolescência. Fiquei pensando se os filmes ainda me encantariam tal como me encantaram. Resolvi arriscar. Folheei o livro e escolhi começar a reassistir aos filmes de Burton por justamente um filme que assisti ao mesmo tempo que com quinze anos, também há mais de quinze anos. E esse filme foi A Noiva Cadáver.
Vamos a uma breve sinopse. A história se passa no século XIX, provavelmente durante a Era Vitoriana. Victor Van Dort (dublado por Johnny Depp), um jovem de uma família rica, está prestes a se casar com Victoria Everglot (Emily Watson), filha de uma família aristocrática falida. O casamento é um mero arranjo de interesse dos pais dos noivos. Afinal, os Van Dort são novos ricos que desejam ascender ao círculo da nobreza. E os Everglot, mesmo desprezando esses ricaços, necessitam deste casamento para se salvarem da ruína.
Com o casamento já marcado, os noivos ensaiam seus votos. Todavia, o jovem Victor, nervoso e desajeitado, comete uma série de gafes que o colocam em uma situação difícil frente aos seus pais e aos pais da noiva. E devido a isso ele acaba fugindo para uma floresta. Lá, na penumbra da noite, em meio a uma clareira, ele resolve ensaiar seus votos de casamento. E, ao fazer o gesto de colocar no dedo da noiva o anel, pensando estar apenas o colocando em um galho seco, coloca a aliança no dedo de uma mulher morta. Tal mulher é uma noiva cadáver chamada Emily (dublada por Helena Bonham Carter). Com isso, a noiva “aceita” o casamento e o leva ao mundo dos mortos. A partir daí, o filme se desenrola em uma narrativa que mescla o contraste entre o mundo dos vivos e o dos mortos. E, ao mesmo tempo em que Victor tenta retornar à sua noiva original, Victoria, começa a simpatizar com Emily e sua trágica história.
Assistindo ao filme e buscando compreender as várias camadas desta obra, fica claro a delicadeza com que é tratada as temáticas acerca da vida e da morte, do amor e da tragédia. Mas, claro, de forma leve e reflexiva. A relação entre Victor, Victoria e Emily cria um triângulo amoroso não convencional, onde a presença da morte não impede o surgimento de emoções humanas, como o amor, a compaixão e o arrependimento. A noiva cadáver, Emily, é uma personagem trágica. Observem bem a história dela: Emily foi assassinada na noite de seu próprio casamento e, mesmo morta, continuou esperando por uma nova chance de concretizar seu sonho de um amor a dois.
Tim Burton, através de seu estilo visual inconfundível e sua sensibilidade narrativa, nos apresenta uma história sobre escolhas, sobre como lidamos com a perda, com nossos desejos e o inevitável anseio pelo pertencimento, ou seja, de fazer parte de um grupo, comunidade ou de uma vida partilhada com alguém.
Tim Burton consegue explorar a dor da morte e a perda de uma forma sensível e poética, sem cair no melodrama. Emily é uma personagem que representa o luto e a perda, mas também a esperança e o desejo de ser amada. Ela não quer apenas descansar em paz, ela quer viver plenamente, mesmo que sua existência esteja presa ao mundo dos mortos. A relação dela com Victor se desenvolve de maneira comovente, criando um dilema emocional profundo. Por outro lado, Victoria, a noiva viva, representa o desejo de vida e amor em um mundo desprovido de cor e entusiasmo. Sua própria vida é sufocada por um casamento arranjado. Além dos pais que são obcecados por se salvarem da ruína financeira e que enxergam a garota mais como um meio de restaurar sua posição social do que como uma filha.
No livro O Estranho Mundo de Tim Burton, além do autor redigir um texto comentando sobre o filme, ele insere também uma entrevista de Tim Burton. Nesta entrevista Burton comenta: Todos eles (Victor, Vitória e Emily) são pessoas meio excluídas à sua maneira, e essa é a beleza de história para mim. Foi o que me comoveu, além de ser agridoce, meio esperançoso e triste, tudo ao mesmo tempo. A justaposição de quem ficará com quem e o que acontecerá no final foi algo bem difícil de ser balanceado, mas aquilo era crucial e importante para o que era o filme.
Com isso, inclusive, é estabelecido um curioso contraste. O mundo dos vivos é despido de cores, ou pior, é carregado de cores mortas e protocolos sociais a serem cumpridos. Enquanto o mundo dos mortos é repleto de cores (olhem só) vivas, música e alegria. Tanto que cada morto recém chegado naquele mundo é comemorado com alegria em um bar. Isso ressalta o caráter trágico da obra, mas acrescenta as nuances de comédia. Claro, mesmo que havendo tais contrastes, estabelece uma linha de continuidade ou interdependência entre a vida e a morte, a dor e a tristeza, o luto e a alegria.
Um ponto alto do filme é a trilha sonora composta por Danny Elfman. Sempre gostei da música Stay da banda Oingo Boingo. Assim como sempre achei perfeita a trilha sonora do filme Batman de 1989. Um dia, quando descobri que o cantor dessa banda era também compositor de algumas das mais memoráveis trilhas sonoras do cinema, fiquei impressionado. Afinal, Danny Elfman tem um talento sem igual para dar corpo aos filmes através de trilhas sonoras. E não poderia ser diferente em A Noiva Cadáver. Tantos as trilhas instrumentais quanto as canções, ajudam a contar a história e a transmitir as mais profundas emoções dos personagens.
A noiva cadáver, Emily, é uma personagem trágica. Observem bem a história dela: Emily foi assassinada na noite de seu próprio casamento e, mesmo morta, continuou esperando por uma nova chance de concretizar seu sonho de um amor a dois.
Quinze anos atrás, quando eu tinha quinze anos de idade, assisti A Noiva Cadáver uma, duas, três vezes. Lembro que eu gostei muito do filme e o recomendei para diversos amigos e amigas, pai, mãe, tio, tia, primos e primas. Eu não sabia porque havia me conectado tanto com o filme. Talvez fosse a estética de um filme que parecia um conto gótico. Já havia visto com certeza outros filmes de Tim Burton como Os Fantasmas se Divertem, Batman, Batman — O Retorno, A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça, mas também não dava bola para quem era esse diretor ou o que ele pensava ou produzia. Porém, por algum motivo, ou vários, me conectei com a história e criei uma memória afetiva positiva sobre o filme.
Depois de ter assistido alguns dias atrás novamente está obra cinematográfica de Tim Burton, sei que daqui a quinze anos, ou talvez antes, em algum dia qualquer em que queira assistir novamente a um filme de Burton, ou não sabendo que filme assistir, reassistirei A Noiva Cadáver. E provavelmente voltarei a me encantar com o filme — além de refletir sobre as diversas questões que inevitavelmente o filme acaba levantando. Afinal de contas, o filme é um conto gótico de amor e morte. Mas não somente isso. É uma obra que explora a complexidade dos sentimentos humanos. Tim Burton, através de seu estilo visual inconfundível e sua sensibilidade narrativa, nos apresenta uma história sobre escolhas, sobre como lidamos com a perda, com nossos desejos e o inevitável anseio pelo pertencimento, ou seja, de fazer parte de um grupo, comunidade ou de uma vida partilhada com alguém. Com isso, o filme convida o espectador a refletir sobre o que significa estar vivo, não apenas em um sentido físico, mas emocional e espiritual. O que é mais aterrorizante: a morte ou uma vida sem amor e sem propósito?
Com performances de voz impecáveis, uma trilha sonora memorável e um enredo que equilibra tragédia e comédia, A Noiva Cadáver se estabelece como um dos grandes clássicos da filmografia de Tim Burton. Por mais que seja um filme com uma temática sombria, que fala sobre uma noiva cadáver, ao falar sobre a morte, ele celebra a vida. Como disse o próprio diretor naquela mesma entrevista: Sempre gostei de filmes de monstros, e sempre fui fascinado por, mais uma vez, crescer em uma cultura onde a morte é vista como um assunto sombrio, mas, vivendo tão perto do México, onde você vê os esqueletos do Dia dos Mortos e é tudo tão bem-humorado, com música, dança, uma celebração da vida, de um jeito que parece uma visão mais positiva das coisas.
A Noiva Cadáver
Direção: Tim Burton e Mike Johnson
Roteiro: Michael Cohn, Caroline Thompson, Pamela Pettler
Ano: 2005
Duração: 77 minutos
Elenco: Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Emily Watson, Albert Finney, Richard E. Grant, Joanna Lumley
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